Projeto de Lei pretende proibir uso de algemas durante o parto, mas as normas para impedir tal constrangimento já existem. O que falta é cumpri-las.
Quase sempre com uma touca feita de meia-calça na cabeça, que serve para alisar os fios, Rúbia Duarte era uma das mulheres mais falantes do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, unidade prisional destinada exclusivamente a mulheres grávidas ou com filhos de até um ano de idade. Durante doze meses frequentamos o local, em Vespasiano (MG), para entrevistar e fotografar as detentas para o projeto de um livro que está em fase final de produção, o Mães do Cárcere. Rúbia foi uma das internas que mais nos impressionou. Aos 29 anos, já não era mais sua primeira prisão nem o primeiro filho a nascer atrás das grades. O pequeno Lucas veio ao mundo há 11 anos e conheceu sua mãe quando ela ainda estava algemada a um leito do hospital. Atualmente o Senado Federal discute o Projeto de Lei 75/ 12, que proíbe o uso de algemas durante o parto. Mas porque precisamos dessa lei?
Não vamos citar toda a legislação e acordos internacionais que proíbem maus-tratos de pessoas presas ou ataques à sua dignidade. De tão distantes de serem cumpridos no Brasil, soam quase como contos de fadas. Vamos falar de normas mais práticas. O Código de Processo Penal, em seu artigo 292, diz que o uso de contenção deve ser feito diante de resistência à prisão ou determinação de autoridade competente e sua necessidade deve ser testemunhada por, pelo menos, duas pessoas. A lei é de 1941, mas em 2005 Rúbia, presa à época na Penitenciária Estévão Pinto, em Belo Horizonte (MG), dava a luz com os pés e as mãos algemados. “Denunciar? Eu não, melhor não mexer com polícia”, diz.
Como as algemas se transformaram em um meio de simplesmente constranger ou envergonhar a pessoa detida, o Supremo Tribunal Federal editou, em 2008, a Súmula Vinculante nº 11 que diz que elas só podem ser usadas em casos de resistência, fundado receio de fuga ou perigo à integridade física de alguém. A não ser que se acredite que uma mulher com contrações a cada cinco minutos, em pleno trabalho de parto, possa machucar alguém ou sair correndo em uma maratona de fuga e passar pelos quatro policiais da escolta – além dos seguranças do hospital – a súmula deveria ter encerrado a questão, certo? Sim, deveria, mas não o fez.
Em 2014, a Agência Pública de Notícia contou, por exemplo, o caso de uma mulher em São Paulo que conseguiu indenização do Estado por ter sofrido a mesma humilhação. Na decisão, a juíza diz que até 2012, quando o Estado de São Paulo editou o Decreto 57.783 proibindo o uso de algemas no parto, tal prática era “usual” e não haveria de se falar de “fato isolado”. Ainda em 2012, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), do Ministério da Justiça, publicou a Resolução nº 3, com o mesmo teor. Até aqui contabilizamos então pelo menos quatro normas que deveriam ser suficientes para acabar com a prática. Não foi. Tanto que agora o Senado Federal tenta aprovar uma legislação sobre o assunto.
A proposta está na Casa desde 2012 e passou, na semana passada, pela primeira comissão, a de Constituição e Justiça. Isso significa que não é considerada urgente, pois como se observou com especial atenção nas últimas semanas em que os holofotes estão no Congresso, medidas prioritárias tramitam agilmente em poucos dias. Significa, ainda, que precisa passar por comissões de mérito e Plenário antes de ir pra Câmara dos Deputados e seguir o mesmo ritual. Ou seja, não sai tão cedo. Considerando-se, porém, que já existem regras que proíbem a prática e, ainda assim, ela continua sendo observada nas prisões do país, há de se questionar se a aprovação da lei mudará alguma coisa no cenário.
Nem tudo é feito de trevas nesse universo, porém. Desde 1930, período da fundação das primeiras prisões femininas no Brasil, tenta-se encontrar uma solução para as necessidades especiais das mulheres que ingressam no sistema carcerário. A questão da maternidade é um dos principais pontos. Vários estados têm buscado alternativas para cumprir a lei que determina que a mãe deve ter condições de amamentar a criança até que ela complete, pelo menos, seis meses de vida. Em Minas Gerais, por exemplo, desde 2009 todas as mulheres grávidas presas são enviadas ao Centro de Referência. Foi firmada uma parceria com o Hospital Sofia Feldman, na capital, onde são realizados os exames de pré-natal e o parto das internas.
As enfermeiras e médicos da instituição hospitalar já receberam as instruções necessárias para o parto das presas. Acompanhamos de perto um deles. Era o nascimento de Christian, quarto filho de Alessandra Rodrigues. Verificamos uma boa estrutura no hospital, considerado referência no Sistema Único de Saúde (SUS) para partos naturais – título que nem sempre impressiona as presas. “Açougue” é como muitas delas se referem ao Sofia Feldman. O problema, para elas, é exatamente o empenho dos funcionários em fazer com que o parto seja natural. Elas acreditam que isso gera um excesso de sofrimento em casos em que a cirurgia cesariana seria, na opinião delas, mais adequada.
O que é certo é que não há mais algemas nos partos em Minas Gerais. Mas a prática ainda existe em outros lugares do país, como mostra um dos relatos citados pela jornalista Nana Queiroz no livro “Presos que Menstruam”. A detenta teria não apenas sido submetida a um parto com algemas, mas também foi impedida de amamentar, cuidar do bebê após o nascimento e escolher o nome da filha – todos direitos garantidos pela legislação, apesar de alguns deles não conseguirem consensos fáceis. Há quem questione, por exemplo, se a proximidade com a mãe presa para fins de amamentação é um benefício ou uma punição para os bebês. A promotora Vanessa Fusco Simões, por exemplo, ressalta em seu livro “Filhos do Cárcere” os efeitos negativos da estadia das crianças no universo prisional.
Sobre um ponto, porém, não há dúvidas: algemas são desnecessárias durante o parto – além de humilhantes e até torturantes, como classificam alguns. E vamos precisar de mais do que leis para acabar com a prática.