As contradições de uma nação que tem uma gigantesca população carcerária, mas, ainda assim, não consegue punir seus mais violentos criminosos.
São mais de 600 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo. Ainda assim, a alcunha de “país da impunidade” prevalece no discurso sobre o Sistema de Justiça brasileiro. Como podemos, ao mesmo tempo, ser uma das nações que mais prende e uma das que menos pune? A resposta não é simples nem é única, mas se precisássemos resumi-la eu diria que o problema é que prendemos mal, muito mal.
Tráfico de drogas e roubo são os motivos pelos quais estão presos mais de 50% dos condenados brasileiros. Crimes mais violentos ocupam poucas das fichas criminais. Homicídios, 10%. Latrocínio, 2%. Os dados são do Ministério da Justiça e se referem a 2014. Infelizmente, não podemos dizer que a razão dessas proporções está associada aos baixos índices de crimes violentos no Brasil. Em 2014, o país registrou quase 60 mil assassinatos, o que nos colocou em primeiro lugar no ranking de mortes do mundo segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A taxa de solução desses crimes é menor que 20%.
Uma pista sobre as causas desses números pode estar em uma pesquisa conduzida pelo sociólogo Arthur Trindade Costa no Sistema de Justiça Criminal do Distrito Federal. Ao estudar o caminho entre o crime e a condenação, ele aponta uma série de filtros pelos quais agentes como policiais, promotores e juízes definem o que é e o que não é processado. Para exemplificar, ele afirma que a 6º Delegacia de Polícia Civil do DF, por exemplo, apenas abria inquéritos em três casos: flagrantes, homicídios e naqueles em que já existiam indícios suficientes para concluir a autoria do crime.
Não existe, portanto, investigação. Se é flagrante, o autor já está dado. E já que o Código de Processo Penal permite, em seu artigo 310, que a prisão em flagrante seja convertida em prisão preventiva, mandemos todos para a cadeia. Assim, prendemos pequenos traficantes flagrados na rua – “aviõezinhos”, “mulas” e outras peças facilmente substituíveis da engrenagem. O tráfico e todos os crimes relacionados a ele continuam fortes, já que aqueles que comandam seu funcionamento seguem intocados – e só um trabalho criterioso de investigação poderia mudar isso.
Para os homicídios, por sua vez, é obrigatória a abertura de inquéritos, mas isso não significa que os casos são solucionados. Ou a investigação policial não consegue apontar suspeitos ou o processo trava em algum outro filtro. De acordo com estudo do Ministério da Justiça realizado em 2012, mais de 80% dos inquéritos de homicídios abertos até 2007 acabaram arquivados. Ao mesmo tempo, a maioria dos furtos, latrocínios, extorsões, estupros não avançam nem um passo depois do Boletim de Ocorrência.
O resultado é um número enorme de pessoas que nunca viram seus algozes serem nem mesmo investigados. Daí a sensação de impunidade. E um número também enorme de pessoas presas, que faz com que seja necessário quase dobrar as vagas do sistema prisional para caber aqueles que já estão atrás das grades hoje.

O exemplo norte-americano
Os Estados Unidos, donos da terceira maior população carcerária do mundo, já entenderam isso. O governo norte-americano começou a rever sua postura frente a segurança pública e, em 2014, teve a primeira redução da sua população carcerária pelo menos desde 1980. O Departamento de Justiça iniciou um processo de mudanças que busca diminuir o número de criminosos não violentos, especialmente os condenados por tráfico de drogas, nas prisões.
O maior símbolo do novo direcionamento na condução da política americana de encarceramento é a visita do presidente Barack Obama a um presídio federal em 2015 – foi o primeiro chefe de estado americano na história a pisar em uma unidade prisional. Um dia antes da visita, ele resumiu, em uma conferência na Filadélfia, o que pensava sobre o assunto: “nosso Sistema de Justiça Criminal não está nos deixando seguros como gostaríamos nem sendo justo como deveria”.

Por aqui, o cenário continua o mesmo. Prendemos cada vez mais – a população carcerária brasileira aumentou em 80% entre 2004 e 2014 – e somos cada vez mais vítimas de violência – a taxa de homicídios subiu 10% no mesmo período. A conclusão é simples e direta: mais gente atrás das grades não cria uma sociedade mais segura.